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Bom Filho

Bom Filho

20 de Abril, 2021

Como a saúde pública ajuda a garantir água potável

O 46.º episódio das «Perspectivas em saúde», a rubrica semanal sobre saúde que eu faço na Sinal TV [visitar], foi especial, pois contou com a presença do meu colega na Unidade de Saúde Pública do Alto Tâmega e Barroso, o Dr. Rui Capucho, médico de saúde pública e delegado de saúde. Neste episódio, falámos sobre o papel que a saúde pública desempenha na vigilância da qualidade da água que consumimos.

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15 de Abril, 2021

A importância de ter água potável

45.º episódio de «Perspectivas em saúde», na Sinal TV [visitar]

Veja este artigo em vídeo:

Ou leia o texto:

Olá!

No último episódio [visitar], terminei com uma referência, ainda que de passagem e a título de exemplo, à associação estatística entre acesso a saneamento básico e esperança de vida em cada país. Esta associação é um reflexo da importância de ter água potável para beber, cozinhar e realizar as demais actividades humanas que dependem da água, incluindo o lazer.

É por isso que uma das funções essenciais da saúde pública é vigiar a qualidade da água para consumo humano — a água que bebemos, portanto, e outras águas com que contactamos: na piscina, na praia, nas termas, etc.

A propósito da vigilância da qualidade da água para consumo humano, quero relembrar uma curta cena do filme «Regresso ao futuro III» [visitar], em que a personagem principal, o Marty, viaja no tempo, até ao século XIX, a fim de resgatar o seu amigo Doc Brown, que está em vias de ser morto por um pistoleiro fora-da-lei, por uma questão de oitenta dólares. Os três filmes desta trilogia são bem dispostos e oferecem uma tarde ou um serão bem passados, longe de preocupações mundanas ou metafísicas, tendo uma legião de fãs espalhada pelo mundo, pelo que recomendo o seu visionamento, a quem nunca o tenha feito antes, ou mesmo a quem já o tenha feito, mas agora olhando pelos olhos dum médico de saúde pública.

Então, a cena a que me refiro passa-se logo à chegada do Marty ao século XIX. Por obra daquelas coincidências que só acontecem na ficção, a primeira pessoa com quem o viajante no tempo se depara é o seu trisavô Seamus, que lhe dá abrigo, roupa e uma refeição. Ora, durante a refeição, a trisavó do Marty, Maggie, pergunta-lhe se ele quer beber água, o que o Marty aceita de bom grado. A sua trisavó verte-lhe, então, um pouco de água dum jarro para o copo, mas o Marty, ao olhar para a cor da água que lhe puseram no copo, muda de ideias e opta por jantar «a seco» (não que lhe corra muito bem, pois logo de seguida quase parte os dentes num pedaço de chumbo do cartucho que matou o coelho, o que nos poderia levar a falar de questões de segurança alimentar, que é outro ramo da saúde pública, mas deixemos isso para outras núpcias). Voltando ao filme, eu não censuro o Marty por não querer beber a água: é que a que a trisavó Maggie lhe oferece é amarela e tem pequenas partículas suspensas, a flutuar…

Trouxe esta cena do filme «Regresso ao futuro III» a lume, porque ela ilustra, ainda que talvez não fosse essa a intenção do realizador, o grande caminho que percorremos desde essa altura até aos nossos dias, em termos de qualidade da água para consumo humano.

Dizia eu que, no último episódio [visitar], falei sobre a importância do saneamento básico. Esse foi um dos grandes progressos da humanidade, em termos da qualidade da água, ao permitir separar as águas residuais daquela que se usa para beber; e isso permitiu cortar o ciclo de contaminação cruzada, que provocava doenças epidémicas, como, por exemplo, a cólera. Não foi por acaso que, há uns anos, ao terramoto que houve no Haiti se seguiu um surto de cólera: com a destruição das infraestruturas básicas (já de si periclitantes, mesmo antes do terramoto, diga-se de passagem), com a destruição do pouco que havia, a separação entre águas residuais e para consumo deixou de existir e o ciclo de contaminação e contágio da cólera pôde instalar-se.

Mas, além do saneamento, outro grande passo foi o fornecimento de água canalizada, através da rede pública. Tendo sido transportada inicialmente através de aquedutos e distribuída pelos fontanários, hoje em dia, a água chega directamente até às nossas torneiras. Além da comodidade, esta água é tratada e, ao contrário das águas dos poços ou dos furos, tem a garantia de estar livre de micróbios capazes de provocar doenças, que podem ser graves e até mortais. É por isso que é recomendável o consumo de água da rede pública em todos os locais, em detrimento das captações próprias, as quais devem ser analisadas periodicamente, para garantir a sua qualidade.

A grande diferença entre o tempo dos trisavós do Marty e a actualidade, que a cena do «Regresso ao futuro III» ilustra, é que hoje dispomos de água tratada, evitando o recurso a poços e a fontanários, que, não estando sob vigilância, oferecem riscos no seu consumo. A agravar a situação, comparativamente ao século XIX, temos hoje maior pressão sobre os aquíferos, pressão essa proveniente da agricultura intensiva, da indústria e da maior quantidade de águas residuais que se produzem (nem sempre tratadas adequadamente). Hoje em dia, temos a certeza de que o adágio «água é vida» é verdadeiro todos os dias, desde que tomemos as atitudes correctas na sua utilização.

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14 de Abril, 2021

Para que serve a Saúde Pública?

44.º episódio de «Perspectivas em saúde», na Sinal TV [visitar]

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Ou leia o texto:

Olá!

O tema do último episódio [visitar] foi «o que é e o que faz a Saúde Pública». Depois de procurar a definição da especialidade, descrevi as funções do especialista — do médico de saúde pública, portanto —; e, nos episódios anteriores, tenho vindo alegremente a falar de questões de saúde, pública e não só. Esta semana, achei que valia a pena questionar o motivo; ou seja, por que falamos de saúde, por que é isso parte das atribuições da Saúde Pública, e por que faz sentido existir Saúde Pública, de todo.

Ajudou a esse rebate de consciência uma conversa que tive, em que me disseram qualquer coisa como:

— A Medicina já descobriu praticamente tudo; já há muito pouco para avançar em termos da capacidade de curar.

Ora, nada mais falso! Em primeiro lugar, porque, obviamente, há muito mais para descobrir do que o que já sabemos (seja na área médica, seja em todas as outras áreas científicas). Em segundo lugar, porque a intenção curativa da Medicina é um paradigma ultrapassado. Mas, fundamentalmente, porque os grandes avanços da Medicina de que gostamos de nos orgulhar foram, na realidade, obtidos à custa, principalmente, da Saúde Pública.

Ora, a Saúde Pública, como vimos [visitar], tem várias vertentes; e este espaço faz parte duma delas. As minhas «perspectivas em saúde» têm dois objectivos fundamentais: por um lado, explicar os meandros dos cuidados de saúde; por outro lado, educar para a saúde. Ambos os objectivos cabem dentro do âmbito da Saúde Pública; e creio que são ambos importantes. Conhecer o funcionamento do sistema de saúde português, saber como é financiado o Serviço Nacional de Saúde, perceber a diferença entre cuidados primários e secundários, tomar consciência da influência da União Europeia (e doutras instituições internacionais) na nossa saúde — tudo isto contribui para capacitar cada pessoa para tomar decisões, quer como doente, quer como cidadão; decisões essas que podem afectar não só a sua própria saúde, mas também a saúde dos restantes membros da nossa sociedade. Já a educação para a saúde e a promoção da literacia para a saúde (que podem, ou não, ser a mesma coisa) têm um papel a desempenhar na consciencialização da importância da saúde como instrumento para uma vida e uma cidadania plenas e de que forma ela pode ser promovida.

Mas acredito que não vale a pena insistir nem numa coisa, nem na outra — isto é, não vale a pena nem falar de política de saúde nem ensinar medidas preventivas disto ou daquilo — se não estiver bem claro por que é importante falarmos disso.

Comecemos, então, pela prevenção. Lá diz o povo que mais vale prevenir que remediar… Alguma razão deve haver para o povo dizer isto, não deve? Um caro amigo meu intuiu a resposta de forma espantosa certa vez, quando disse:

A Medicina salva vidas? É certo! Mas, o que seria da Medicina se não houvesse, por exemplo, saneamento básico?

O saneamento básico é, talvez, uma das primeiras e mais importantes medidas de saúde pública postas em prática no mundo, por permitir isolar os desperdícios e os dejectos da água para consumo humano, interrompendo, assim, o ciclo de propagação de doenças como a cólera, a febre tifóide, a hepatite e a poliomielite. E — não tenhamos dúvidas — o saneamento básico do senhor Bazalgette [ver mais] fez mais pela saúde dos londrinos, no século XIX, do que todos os hospitais da cidade juntos!

Quando olhamos para a percentagem da população dum dado país que tem acesso a saneamento básico e a comparamos com a esperança de vida nesse país, encontramos uma relação positiva: em princípio, quanto mais gente tem acesso a saneamento, maior a esperança de vida [ver fonte]. Nos extremos dessa linha, encontram-se a Serra Leoa e o Japão: na Serra Leoa, ao nascer, a esperança de vida é de apenas 45 anos e somente 13% da população tem acesso a saneamento básico; no Japão, a esperança de vida, a mais elevada no mundo, é de 83 anos e toda a população tem acesso a saneamento básico. Um estudo [ver fonte] indica que aumentar em 1% a população coberta por saneamento básico, num dado país, faz aumentar a esperança de vida ao nascer, nesse país, em dezoito dias. Dito assim, pode não parecer grande coisa. Mas voltaremos a este tema, para perceber por que é, de facto, uma grande coisa!

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13 de Abril, 2021

O que faz a saúde pública?

43.º episódio de «Perspectivas em saúde», na Sinal TV [visitar]

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Ou leia o texto:

Olá!

A Saúde Pública é uma especialidade médica pouco conhecida e misteriosa para a maioria das pessoas. O médico de saúde pública não tem consultório, não trabalha num hospital, não faz operações, não atende doentes no serviço de urgência… Então, o que é, afinal, a Saúde Pública?

Antes de responder a esta pergunta, convém reforçar que a Saúde Pública é uma especialidade médica, reconhecida pela Ordem dos Médicos [visitar]. A Saúde Pública não é clínica geral; e muito menos deve ser confundida com a Medicina Geral e Familiar — outra especialidade médica, igualmente reconhecida pela Ordem dos Médicos.

Nos dias que correm, a Saúde Pública é a especialidade da Covid-19. Vão à televisão, dão entrevistas nos jornais e telefonam a meio mundo a dizer que estiveram em contacto com doentes com Covid-19 e têm de fazer teste e ficar uns dias em casa. Mas, quando não há Covid-19, o que é, o que faz e para que serve a Saúde Pública?

Responder a isso não é uma tarefa fácil! Para começar, não há acordo, sequer, quanto ao nome da especialidade. Em Portugal, chamamos-lhe Saúde Pública, à semelhança do que faz a maioria dos nossos parceiros europeus. No entanto, em certos países da União Europeia, sobretudo no Norte, a Saúde Pública é conhecida pela denominação Medicina Social, ou seja, a medicina que trata da sociedade. Já os Checos, os Italianos e os Finlandeses chamam-lhe Higiene, em honra duma das filhas de Esculápio, a deusa Hígia, patrona da saúde, da limpeza e da sanidade, na mitologia grega. Quanto aos Cipriotas, para serem diferentes de todos, resolveram chamar-lhe Medicina Comunitária.

Tal como há vários nomes para a especialidade, também existem várias definições. As definições são sempre problemáticas: ou são suficientemente abrangentes para toda a gente estar de acordo — e não dizem nada de útil — ou concretizam e, inevitavelmente, geram desacordo, porque… não é bem isto… devia ser mais aquilo…

Uma das minhas definições preferidas é a que afirma que a Saúde Pública é «o ponto de encontro entre a medicina, a sociedade e o governo.» De facto, estes três elementos — o conhecimento médico, o envolvimento dos cidadãos e as decisões tomadas pelos políticos — são indispensáveis para que a Saúde Pública possa atingir os seus objectivos.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, «a Saúde Pública diz respeito a todas as medidas com o objectivo de prevenir a doença, de promover a saúde e de prolongar a vida na população como um todo.» Em suma, são medidas destinadas «a criar as condições para que as pessoas possam ser saudáveis». As medidas de saúde pública tanto podem ser tomadas ao nível do sector público, como ao nível do sector privado. Contudo, a Saúde Pública é, habitualmente, encarada como uma responsabilidade, principalmente, do Estado.

A Organização Mundial da Saúde acrescenta ainda que as medidas de saúde pública são «organizadas». Este adjectivo significa que a Saúde Pública se estrutura em torno de actividades planeadas e executadas de forma global e não em pequenas medidas dirigidas, de cariz limitado. Outra característica da Saúde Pública, que deriva da anterior, é que as medidas de saúde pública abrangem a população como um todo e não cada pessoa individualmente.

Estas medidas de saúde pública, de que temos estado a falar, estruturam-se em torno de três funções principais. A primeira função consiste na avaliação e no acompanhamento da saúde da população, com o objectivo de proceder à identificação de problemas e à definição de prioridades em saúde. A segunda função consiste no planeamento de programas e projectos e de políticas públicas destinados a resolver ou a minorar os problemas identificados anteriormente. Finalmente, a terceira função consiste em promover o acesso da população a cuidados de saúde preventivos e de promoção da saúde. Nesta terceira função inclui-se, ainda, a função de representação do Estado, figura que é designada por «autoridade de saúde».

O cumprimento destas três funções organiza-se em torno de dez operações essenciais de saúde pública, que foram definidas pela Organização Mundial da Saúde [visitar].

A primeira tarefa que incumbe à saúde pública é a observação. A saúde pública vigia e acompanha o estado de saúde da comunidade, para identificar quais são os problemas que afectam esse mesmo estado de saúde. Para o efeito, a saúde pública avalia periodicamente os dados e os registos de mortalidade e de doença na sua região, bem como a rede de apoio social existente.

A segunda é a vigilância e a resposta às emergências de saúde pública. Aquilo que a saúde pública anda a fazer, em termos de Covid-19, cai directamente nesta categoria, mas há mais: intoxicações alimentares colectivas, eventos de massas, só para citar alguns exemplos.

A terceira operação essencial é a identificação e a investigação das ameaças à saúde da comunidade. Para este efeito, a saúde pública coordena a vigilância de agentes tóxicos ou infecciosos que possam colocar em risco a saúde da comunidade, incluindo a pesquisa laboratorial de produtos químicos, de bactérias e de parasitas, e toma as medidas necessárias para conter essas ameaças.

Em quarto lugar, cabe à saúde pública informar e educar a população e dar-lhe as ferramentas necessárias para saber decidir a respeito da sua saúde. Esta tarefa realiza-se através de iniciativas de educação para a saúde; de campanhas de informação; de programas de promoção da saúde e de prevenção da doença; e de comunicação mediática, de que este programa é um exemplo.

A quinta tarefa é a prevenção da doença, incluindo a identificação precoce de certas doenças. Cabem aqui a vacinação, os rastreios oncológicos e a gestão das doenças que são, por sua vez, factores de risco para outras doenças — por exemplo, da diabetes e da hipertensão arterial — aquilo a que se chama de prevenção secundária.

A sexta tarefa consiste no desenvolvimento de políticas e de planos que suportem os esforços individuais e da comunidade em termos de saúde. Esta quinta tarefa envolve a criação de planos locais de saúde, de planos de contingência para situações de crise, e o levantamento e a mobilização dos recursos necessários à execução desses planos.

A Saúde Pública é também, por vezes, chamada a contribuir para a formação dos colegas doutras especialidades, contribuindo para a existência de pessoal qualificado ao serviço nos cuidados de saúde. Para além disso, a Saúde Pública deve também ter um papel na definição dos planos estratégicos de gestão do pessoal de saúde.

A oitava tarefa é promover a sustentabilidade dos serviços de saúde, maximizando o seu impacto, a sua eficiência, a integração dos cuidados prestados por diversos níveis de serviços (cuidados de saúde primários, cuidados hospitalares, cuidados continuados…) e garantindo a continuidade e estabilidade do seu financiamento.

A nona operação essencial é a mobilização da comunidade, através de parcerias, para a identificação e resolução dos problemas da saúde. Esta tarefa acaba por ser transversal às outras, na medida em que a identificação dos problemas, a aplicação de medidas organizadas, destinadas a solucioná-los, e a educação e informação requerem, habitualmente, a colaboração de diversas entidades públicas e privadas.

Finalmente, incumbe à Saúde Pública investigar novas visões e soluções para os problemas de saúde da comunidade. Esta tarefa associa-se, claro está, à função de observação, a primeira das operações essenciais de saúde pública que enumerei aqui. Não é possível propor soluções para problemas que se desconhecem, da mesma forma que o simples diagnóstico dum problema não o soluciona. Assim sendo, a Saúde Pública é responsável por identificar a investigação mais inovadora e promover a sua passagem do ambiente científico e académico para a prática do dia-a-dia. Da mesma forma, a Saúde Pública realiza estudos epidemiológicos, análises de política de saúde e investigação dos serviços de saúde.

Para além destas operações essenciais, o médico de saúde pública assume também a função de autoridade de saúde. A autoridade de saúde é responsável por garantir o cumprimento das leis e dos regulamentos que protegem a saúde e garantem a segurança dos cidadãos. Para isso, cabe ao delegado de saúde: informar e educar a população a respeito do quadro legal existente; propor e advogar a criação de novos documentos legais, sempre que necessário; apoiar os cidadãos e as entidades no cumprimento das suas obrigações legais no domínio da saúde; e, quando necessário, assegurar a intervenção dos meios coercivos apropriados.

Como facilmente se adivinha, a Saúde Pública não realiza cada uma destas tarefas isoladamente. Pelo contrário, todas elas se intersectam, formando um ciclo contínuo de avaliação e diagnóstico; de inovação técnica, científica e política; e de promoção da saúde da população. No centro deste círculo, encontramos a investigação; e, à volta dele, todos os parceiros, públicos e privados, com e sem fins lucrativos, sem os quais nada disto é possível.

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12 de Abril, 2021

Uma vez terminados os prioritários, quem é vacinado primeiro?

42.º episódio de «Perspectivas em saúde», na Sinal TV [visitar]

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Olá!

Na campanha de vacinação contra a Covid-19, uma vez terminados os prioritários, quem é vacinado primeiro?

Os peritos de saúde pública que estabelecem os critérios de prioridade fazem-no com base nos resultados dos estudos que levaram à aprovação das vacinas, dado que há grupos populacionais sobre os quais há conhecimento e há aqueles que ainda não foram estudados [ver mais]; há diferentes graus de eficácia consoente o grupo populacional (seja por faixa etária, sexo, raça, etc.; aliás, isto tem sido até bastante falado, por causa das alegações quanto à eficácia da vacina da AstraZeneca nos idosos [ver fonte]); e há efeitos secundários de cada vacina que podem constituir contraindicações à sua administração a certas pessoas.

Para além do conhecimento intrínseco sobre as vacinas, os peritos levam também em conta quatro princípios éticos: a maximização do benefício e a minimização do risco, a redução das desigualdades em saúde, a promoção da justiça e a promoção da transparência.

Com estes objectivos em mente, começou-se por vacinar os profissionais de saúde, os residentes e os trabalhadores dos lares de idosos e das unidades de cuidados continuados, os militares e os operacionais das forças de segurança, dos bombeiros e da protecção civil; e, logo depois, as pessoas que, por força da idade ou de terem uma doença crónica grave, corriam maior risco de complicações, se apanhassem Covid-19 [ver fonte].

Uma vez vacinados estes, vamos descendo a escala da idade e vamos descendo a gravidade das doenças. Começámos pelos doentes do coração, dos rins e dos pulmões; depois, vamos para os diabéticos, os obesos e os hipertensos [ver fonte]. Entretanto, foram acrescentados os trabalhadores das escolas e as pessoas com trissomia 21, que não faziam parte do plano original [ver fonte].

Falta a terceira fase, que engloba o resto da população. Nesta fase, não estão definidos critérios de prioridade específicos, uma vez que se prevê que o número de vacinas disponíveis venha a ser suficiente para rapidamente vacinar toda a gente e, portanto, não seja preciso definir mais grupos prioritários. Se não for o caso, ou seja, se as vacinas não chegarem ao ritmo previsto, então haverá que pensar quem queremos vacinar primeiro. Em última instância, a Ordem dos Médicos sugeriu a idade como critério único [ver fonte], o que acaba por fazer algum sentido, pois este é um importante determinante do risco de complicações e morte. Além disso, a idade está também associada ao aparecimento de doenças crónicas e mesmo ao risco de contágio.

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11 de Abril, 2021

O espírito e a letra da lei, ou o legalismo

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Em Março de 2003, sucedeu um pequeno episódio que relatei, na altura, n'«O muro das lamentações» [ver mais] e, dez anos mais tarde, na «Rua da Constituição» [ver mais]. Entretanto, um novo episódio, em nada relacionado com o primeiro, mas que também vai entroncar no mesmo problema de base, ficou registado já só na «Rua da Constituição». Agora, quase mais dez anos volvidos, uno os dois no mesmo texto, pois, apesar da sua distância temporal e de contexto, acabam por estar mais relacionados do que possa parecer.

Há quase vinte anos, a minha rotina incluía uma boleia semanal, à Sexta-feira, entre o Hospital de São João [visitar] e a Baixa do Porto. Ora, num desses dias, como em tantos outros, a minha boleia chegou e parou em frente à entrada principal do Hospital. Eu já lá estava à espera, de modo que, ao vê-la, atravessei a rua, entrei no carro, pus o cinto de segurança e arrancámos. Nada mais rotineiro.

Tínhamos avançado cerca de cinquenta metros, quando um agente da PSP nos fez sinal para parar. Continência, boa tarde, você parou lá atrás, onde está um sinal de proibição de parar ou estacionar, sabe que cometeu uma infracção… Mas foi rápido, foi só para o rapaz entrar no carro, não, não é meu filho, ia só dar-lhe boleia, pois, não reparei no sinal, parei ali porque a rua era mais larga, para não atrapalhar. Mas aqui circulam ambulâncias, o carro ali não pode parar, vou ter de autuá-la. Se bem o disse, melhor o fez, dezanove euros de multa por uma contra-ordenação de meio minuto, se tanto, para eu poder entrar no carro.

É claro que, depois, estivemos mais vinte e dois minutos (bem contados, pelo meu relógio) à espera de que o senhor agente da PSP alinhasse todas as letrinhas no papel: quando, quem, como, quanto. Parados onde ele nos mandara — mesmo em frente à entrada do Serviço de Urgência do Hospital de São João e bloqueando parcialmente a passagem dos autocarros que saíam da paragem (nessa altura, o trânsito estava organizado de forma diferente da actual). Mas, no entendimento do senhor agente, não atrapalhámos nada durante esses vinte e dois minutos, ao contrário de quando parámos por um momento mais atrás…

No final, ainda nos recomendou que, da próxima vez que quiséssemos parar, o fizéssemos no parque reservado aos táxis. Para já, nem os táxis cabiam lá todos, tendo alguns de ficar no meio da rua (sem estorvar as ambulâncias nem o trânsito, depreende-se, pois nunca me constou que um táxi tivesse sido multado por parar em frente ao Hospital de São João); depois, essa recomendação cheira a esturro: se parar no parque dos táxis, em vez daquele agente, vem outro colega (por algum motivo, eles parecem andar sempre ao pares) multar!

Relatada que está a primeira, passemos, então, à segunda história. Há uns tempos, fiz uma reclamação à CP. Além de várias idiossincrasias que me levam, amiúde, a preferir o carro, em detrimento do comboio, essa empresa tem, no regulamento de vendas, uma regra singular: se se comprar um bilhete com qualquer tipo de desconto através da Internet, ou do Multibanco, é-se obrigado a apresentar o documento comprovativo do direito a esse desconto ao revisor, no comboio; mas, se se realizar igual compra ao balcão duma bilheteira, é-se obrigado a apresentar tal documento ao vendedor, no acto da compra, e, novamente, ao revisor, no comboio. Esta situação resulta em que, por exemplo, uma pessoa que vá viajar em grupo não possa adquirir, sozinha, os bilhetes para todos os companheiros de viagem, se uma delas tiver direito a qualquer tipo de desconto, pois terá de ser esta a apresentar o documento que lhe confere tal direito. Tendo-me sucedido, precisamente, isso, quando procurei comprar bilhetes para mim e para uma colega, para uma viagem a Lisboa (nós não vivemos na mesma terra e, mesmo que vivêssemos, eu não poderia ficar com o seu cartão de cidadão, para comprovar o direito ao desconto, deixando-a sem documento de identificação), efectuei, então a reclamação que referi a abrir este parágrafo. Uns tempos depois, recebi em casa uma carta da CP, informando-me de que não havia razão para reclamação, dado a lei ter sido cumprida — a tal lei que obriga a apresentar duas vezes o mesmo documento, para ter direito a um desconto.

Há um elemento comum a ambas a histórias: num caso, a obrigatoriedade de apresentar duas vezes o mesmo comprovativo para poder beneficiar dum desconto; noutro, a curta paragem para tomada dum passageiro — em ambos os casos, a outra parte (seja o agente da PSP, seja o departamento responsável por analisar as reclamações dos clientes) apenas procura, numa análise superficial, responder à questão:

— A lei foi cumprida?

Permitam-me reflectir um pouco sobre o papel da lei nas nossas vidas, tendo por base estes dois casos.

Por um lado, a lei quer-se para resolver problemas e conflitos concretos; deve ser pragmática e ser aplicada pragmaticamente. É proibido parar em frente ao Hospital de São João. Certo. Mas, se uma pessoa tem de entrar para o carro, como é que faz sem o parar? Poderia caminhar até à zona mais próxima onde fosse permitido à minha boleia parar, é certo; mas então talvez a lei devesse contemplar locais específicos para paragem para entrada e saída de passageiros de veículos de transporte individual, para além dos de transporte colectivo — isto porque, na zona do Hospital de São João (como em muitas outras), se eu for procurar um local para fazer tudo como manda a lei, mais me vale ir a pé até à Baixa — sempre caminho menos!

Além disso, se a minha liberdade termina quando começa a do meu próximo, então a minha liberdade permite-me entrar para o carro, porque não prejudiquei a vida de ninguém com isso. Uma coisa é violar a letra da lei, outra é violar o espírito. Creio não estar errado em afirmar que, naquele dia, o espírito não foi violado. Para isso, temos os advogados, especializados em violar o espírito sem violar a letra…

Esta questão sobre a função da lei tem como base o conceito de contrato social. Eu alinho filosoficamente pela teoria de Hobbes em relação à origem do contrato social e à transição do estado de natureza para um estado social. De certa forma, a criação das primeiras sociedades provavelmente resultou duma série de transformações que fizeram os indivíduos começar a sentir que estavam mais protegidos quando permaneciam em conjunto. Aperceberam-se de que o trabalho em equipa resultava melhor, porquanto era mais fácil caçar quando todos cooperavam. Com a sedentarização e a revolução neolítica, estas sociedades primitivas foram evoluindo, tornando-se mais complexas. A divisão de tarefas entre todos os elementos da comunidade, além de tornar as sociedades primitivas mais complexas, contribuiu também para a sua estratificação.

Infelizmente, viver em sociedade, tendo a cada momento de conciliar interesses divergentes, é difícil. Se, por um lado, o grupo é mais forte do que o indivíduo isolado, também é verdade que se torna inevitável o aparecimento de conflitos dentro da comunidade, que diminuem a coesão e assim enfraquecem o grupo.

Aqui, porém, mudo-me para o campo de Locke, na medida em que defino o papel do Estado e, por consequência, o da lei que ele produz como sendo o de resolver conflitos e facilitar a vida do cidadão e não criar-lhe obstáculos. A questão volta, então, a ser a da lei como entidade consentida e relativa, em resultado da vontade comum dos indivíduos de respeitá-la, porque daí obtêm um benefício, e não absoluta (como propunha Hobbes). Assim sendo, na situação que relatei, a multa que nos foi aplicada é legal, mas injusta, e, por isso, passível de contestação. A multa foi paga, que remédio! Mas não concordo e, como vivo numa democracia, posso dizer livre e abertamente que não concordo.

Uma outra questão levantada pelo mesmo episódio é a da igualdade, ou da proporcionalidade. Em duas penadas: vêem-se por aí atropelos ao Código da Estrada que até doem e, muitas vezes, encontram-se presentes agentes da autoridade, que agem como se nada vissem! Já no caso em apreço, viram até bem demais… Esta realidade produz um efeito psicológico nefasto, que é o do infractor sentir que não está ser punido pela sua infracção, mas somente por ter tido o azar de ser apanhado, ou mesmo assumir a condição de vítima dum polícia mal-disposto. Seguindo esse raciocínio, para evitar infracções, basta parar num sítio onde o senhor agente não veja, mas tal mecanismo psicológico em nada contribui para a reabilitação do comportamento e é, provavelmente, uma das causas, por exemplo, do nível de corrupção verificado em Portugal. Lá diz o povo: «ou comem todos, ou há moralidade»…

Já no caso da segunda história, só limita a argumentação à aferição do cumprimento da norma quem aceita o incumprimento da norma como um desfecho possível. É certo que em parte nenhuma a lei é sempre cumprida. Mas ouso afirmar que Portugal tem, nesse campo, uma relação peculiar com a lei, de tal forma que o seu cumprimento, por ser quase excepcional, é justificativo de qualquer acto: como, perante uma lei, não a cumprir é uma opção encarada como legítima (e frequente), então, perante uma divergência ou um conflito, o primeiro passo na sua resolução é identificar qual dos elementos está do lado da lei. Eu cumpro a lei, ergo a razão está do meu lado. Mas pode acontecer que ambos tenham cumprido a lei e, no entanto, desse cumprimento tenha resultado uma injustiça.

Não tenho dúvidas de que a menina que me vendeu o bilhete do comboio cumpriu as ordens que tinha. Isso, para mim, não é nem pode ser o fulcro do debate. A lei é para cumprir (não pense agora o leitor que sou anarquista) e, em condições normais, nem sequer outra possibilidade nos pode passar pela cabeça. Mas a lei pode estar errada ou ser injusta; e deve estar permanentemente aberta a discussão e melhoria (falando nisso, ainda ninguém reviu a lei da limitação de mandatos autárquicos, pelo que é melhor estarmos preparados para mais manigâncias dos próximos dinossauros municipais, daqui a uns meses). E a mim parece que apresentar duas vezes o mesmo documento para beneficiar dum desconto é uma burocracia desnecessária. Se for preciso mudar a lei para melhorarmos estes e outros pontos, qual é o mal?

Portanto, precisamos de melhorar — e muito — a nossa relação com a lei. Primeiro, precisamos de a conhecer. Mas o que estas duas histórias nos mostram é principalmente que, por um lado, precisamos de aprender a entender o espírito da lei e pugnar pela sua realização, mesmo quando isso possa não corresponder integralmente à aplicação ao pé da letra, e, por outro, precisamos de saber dar-lhe o valor relativo de todas as realizações humanas, eternamente objecto de reflexão, correcção e aperfeiçoamento — e mesmo, quando necessário, transgressão.

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