Homenagem a Maria Hélder
Texto por Fernando Magalhães
Estamos aqui, neste momento, para homenagear a Dr.ª Maria Hélder Martins Coelho, nossa docente, falecida este ano. Permitam-me que a trate, como sempre a tratei, por Maria Hélder.
Agradeço a presença do seu filho, Gustavo, da sua nora, Sofia, e da sua neta, Nati. Gustavo: permite-me que te trate assim, informalmente. Conheço-te desde pequeno e várias foram as vezes que dei boleia, à tua mãe e a ti.
Como disse na minha intervenção inicial, este ano, o aniversário do ISCAP é uma celebração restrita, em que quase apenas cá está gente da casa. Pois bem. Vou aproveitar.
São muitas as pessoas no ISCAP que me acusam de frequentemente ser politicamente incorreto, dizendo aquilo que penso, nos momentos errados, sem refletir. Confesso que até certo ponto têm razão. E é isso que hoje me apetece ser. A homenagem à Maria Hélder é um excelente momento para ser politicamente incorreto, como ela sempre foi.
Falar sobre a Maria Hélder… Não é tarefa difícil. Para começar, posso dizer que era uma das pessoas com o pior feitio que conheci em toda a minha vida. Calma… Não estou a falar num defeito. A Maria Hélder era conhecida por ter mau feitio porque, ainda mais do que eu, dizia o que pensava, frontalmente, sem papas na língua e sem se preocupar com o «politicamente correto». A Maria Hélder era apenas a Maria Hélder. Com uma sinceridade e frontalidade ímpares, discutia, lutava pelos seus pontos de vista, zangava-se, mas continuava sempre a ser amiga de quem gostava e de quem era amigo dela. Eu tive essa sorte.
Conheci a Maria Hélder por mais de trinta anos e sempre fomos amigos. Não uma amizade fácil: muitas foram as vezes em que discutimos seriamente, que nos zangámos um com o outro. Mas a amizade sempre resistiu porque sempre houve respeito mútuo e sabíamos ambos pedir desculpa quando sabíamos estar errados.
Como já disse, sou teimoso e não é fácil vencer-me no que à teimosia diz respeito. Pois bem: há uma coisa em que a teimosia da Maria Hélder me venceu. Passei mais de trinta anos a tratá-la por Maria Hélder e a exigir que ela me tratasse por Fernando, mas ela sempre me tratou por Senhor Doutor… A teimosia da Maria Hélder, neste ponto, venceu a minha teimosia.
A Maria Hélder era uma mulher íntegra, muito dedicada ao seu filho Gustavo e sempre construiu a sua vida em função do filho. Muitas vezes, como amigos e não colegas, falávamos da família, dos filhos, das preocupações. Pois, para a Maria Hélder, a grande preocupação era o seu filho Gustavo e o sucesso e a felicidade que ele deveria encontrar na sua vida de adulto. Quantas vezes eu achava que ela estava a ser muito mãe galinha e até um pouco chata e lhe dizia: Ó Maria Hélder, deixe o rapaz em paz!.... Ao que ela me respondia: Quando os filhos do senhor doutor crescerem um pouco quero ver se me diz o mesmo…
A Maria Hélder morava muito próximo de mim e por vezes, já aposentada, telefonava e dizia ter passado à minha porta e que teve vontade de tocar, mas que não queria incomodar. Por mais que eu lhe dissesse que tocasse, ela nunca o fez. Até que um dia a campainha tocou e era a Maria Hélder. Estava feliz como nunca a tinha visto. Era só para me dizer que tinha nascido uma neta.
Mas a Maria Hélder não era apenas uma mulher dedicada ao Gustavo. A Maria Hélder foi uma mulher dedicada ao ISCAP e à sua carreira.
A Maria Hélder, na minha opinião, era uma mulher muito à frente do seu tempo, o que lhe trouxe dissabores e que creio ter contribuído para o seu conhecido mau feitio.
A Maria Hélder foi uma self-made woman. Como ela dizia com orgulho, era descendente de uma família humilde e teve de estudar e trabalhar ao mesmo tempo para chegar onde chegou. Também, com orgulho, referia muitas vezes ter tido de cuidar e educar os seus irmãos quando os seus pais morreram. A Maria Hélder foi uma mulher forte, corajosa, que subiu profissionalmente a pulso.
Quando a Maria Hélder entrou no ISCAP, foi para lecionar disciplinas da área da Contabilidade, área na altura lecionada praticamente só por homens, alguns, repito, alguns, bastante machistas.
A este propósito, vou contar um episódio ocorrido há pouco tempo. Quando o Doutor Eurico Basto se aposentou, realizou-se um jantar de despedida em que estive presente. A mesa era em U. Estava eu sentado à mesa e reparei que de um lado do U estavam quase só homens. Do outro lado, praticamente só mulheres. Pensei eu: esta gente da Contabilidade é mesmo esquisita!... Foi quando reparei que de um lado estavam os aposentados e os docentes com mais idade (do tempo da Maria Hélder), só homens; do outro lado estavam os professores atuais de Contabilidade, praticamente só mulheres. Por isso, colegas mulheres da área da Contabilidade: a Maria Hélder esforçou-se muito a abrir portas às mulheres no grupo da Contabilidade e para que estas fossem respeitadas. Podem recordar a Maria Hélder como uma feminista de respeito.
Voltemos à vida da Maria Hélder.
Numa altura em que ninguém fazia mestrados, a Maria Hélder foi fazer o mestrado para a FEP. Na área da Contabilidade foi a primeira a ter mestrado. Como era possível? Mulher e mestre?
E eis que a Maria Hélder, mulher, chega a Professora Coordenadora de Contabilidade… outro escândalo!
E ainda para mais, os estudantes gostavam das aulas da Maria Hélder!
E a Maria Hélder decide que vai fazer doutoramento!
E a Maria Hélder é Diretora do Curso de Contabilidade e Administração!
E a Maria Hélder é membro da Assembleia de Representantes!
E a Maria Hélder integra o Conselho Diretivo do ISCAP!
E a Maria Hélder é eleita Presidente do Conselho Pedagógico!
E por aí fora…
Como vêm, a Maria Hélder merece bem esta homenagem. Num ambiente de grande adversidade, a Maria Hélder fez uma carreira de sucesso. E se alguém tem dúvida do seu mérito, não tenha. No tempo em que isto tudo aconteceu, ainda não se falava da lei da paridade…
Pela sua determinação, dedicação, sabedoria e pela marca que deixou na nossa escola, o ISCAP agradece-lhe.
Pela sua amizade, agradeço-lhe eu.
Ah… Já agora, se um dia nos encontrarmos, seja lá onde for, continuarei a insistir que me trate por Fernando.