Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Bom Filho

Bom Filho

23 de Março, 2021

Quando teremos vacina para a Covid-19?

Republicação do 23.º episódio de «Perspectivas em saúde», na Sinal TV [visitar]

Veja este artigo em vídeo:

Ou leia o texto:

Olá!

A pergunta a que vamos tentar responder hoje é das mais complexas que existem: quando teremos vacina e, quando a tivermos, poderemos retomar a vida pré-pandemia?

Comecemos pelo início. Uma vacina demora muitos anos a desenvolver. Contudo, em relação à Covid-19, foi anunciado que teríamos uma vacina pronta em menos dum ano.

Pensemos na Covid-19 em comparação com outras doenças causadas por outros tipos de coronavírus, como sejam a síndroma respiratória aguda grave (SARS) ou a síndroma respiratória do Médio Oriente (MERS), ou mesmo doenças causadas por outros tipos de vírus, como sejam a sida. Não há vacinas para nenhuma delas (no caso da sida, há trinta anos que esperamos uma vacina); e agora vamos conseguir fazer uma vacina para a Covid-19 num ano ou menos?!

Bom, há algumas diferenças fundamentais que abrem uma janela de esperança. Relativamente ao VIH, o SARS-CoV-2 tem uma taxa de mutação muito mais lenta, o que o torna mais susceptível à acção preventiva duma vacina; e tem a vantagem de não atacar o sistema imunitário, que é um dos factores que mais tem dificultado o desenvolvimento duma vacina contra o VIH. Portanto, se, por um lado, é bem possível que nunca venhamos a ter uma vacina para a sida, os motivos por que assim é não se verificam no caso da Covid-19.

Relativamente à SARS, a gravidade da doença fazia com que não houvesse transmissão por pessoas assintomáticas, nem pré-sintomáticas. Isso facilitou a contenção do surto de 2003 e nunca mais aconteceram outros surtos. A verdade é que foram desenvolvidas várias vacinas, mas, não havendo mais surtos, deixou de ser economicamente apetecível desenvolver vacinas que ninguém precisa de tomar e, portanto, não há dinheiro para concluir a investigação. Além disso, mesmo que houvesse dinheiro dedicado a estudos sobre vacinas para SARS, sem surtos a acontecerem, não é possível concluir os testes à sua eficácia.

Relativamente à MERS, foi identificada em 2012 e, desde então, teve alguns surtos de grande dimensão. Mas a sua origem é relativamente fácil de controlar, visto que se transmite a partir de dromedários e a transmissão entre pessoas só ocorre quando os doentes estão sintomáticos. A melhoria das condições de higiene no tratamento dos animais e nos hospitais, que são os locais onde ocorre a maioria dos contágios entre pessoas, fez com que os surtos mais recentes tenham sido muito pequenos. Ora, se a população geral está, em princípio, segura e se, mesmo entre grupos de alto risco, o contágio é pouco frequente e pode ser prevenido com relativa facilidade, através da aplicação de medidas de higiene, também não se torna uma doença para a qual seja prioritário desenvolver uma vacina. Além do mais, o problema de testar a sua eficácia é parecido com o da SARS: surtos demasiado pequenos não permitem ver se a vacina é eficaz ou não a preveni-los.

A boa notícia é que, como a Covid-19 é provocada por um vírus da família dos que provocam SARS e MERS, muitas vacinas que tinham sido pensadas para estas duas doenças e nunca chegaram a ser testadas, pelas razões que eu já disse, foram reorientadas para a Covid-19 e permitiram acelerar a fase inicial de desenvolvimento laboratorial das vacinas. Por outro lado, com a quantidade de financiamento atribuído à investigação sobre Covid-19 e a transmissão muito mais activa entre pessoas, que aumenta o número de casos e facilita a selecção de amostras, é de esperar que os passos seguintes sejam também mais rápidos.

Ainda assim, é preciso garantir três coisas: que a vacina é eficaz, segura e efectiva. Uma vacina eficaz significa que é capaz de induzir uma resposta do sistema imunitário. Esses testes já se encontram realizados e permitiram identificar vacinas que poderiam realmente avançar para a fase seguinte: segurança. Uma vacina segura significa que não induz efeitos adversos graves, que impeçam a sua administração às pessoas. Ou seja, não podemos vacinar as pessoas com vacinas que provocam outras maleitas. Como todas as vacinas passam por esta fase, os argumentos dos movimentos antivacinas caem, simplesmente, por terra. Todas as vacinas são seguras, porque todas foram testadas e, se se descobrisse que o não eram, não seriam comercializadas. Aliás, houve notícia de que um estudo da AstraZeneca foi interrompido, precisamente, porque se suspeitou de efeitos secundários graves da vacina que estava a ser testada, que depois até nem foram confirmados [ver fonte]. Sobra a efectividade; e é nesta fase que estão a maioria dos estudos de vacinas para Covid-19. Uma vacina efectiva é aquela que funciona na população geral. Para verificar isso, fazem-se estudos de grande dimensão, com dezenas de milhar de pessoas. Recrutar dezenas de milhar de pessoas para um estudo científico é um desafio em si mesmo e demora tempo. Depois, é preciso administrar a vacina, ou o placebo contra o qual se pretende testar, o que também não é coisa que se faça dum dia para o outro. Como se isto não bastasse, depois vem a parte mais difícil de todas: as pessoas que fazem parte do estudo têm de ser infectadas, para ver se a vacina as protege ou não. Ora, não sendo ético injectar o vírus nas pessoas, nem sendo ético dizer-lhes para não terem cuidado, sobra uma opção: esperar que dezenas de milhar de pessoas, enquanto têm os cuidados gerais que lhes foram recomendados na televisão, nos jornais, no médico, no trabalho, em todo o lado, para evitar o contágio, sejam contagiadas. É fácil de ver a dificuldade que aqui está…

A verdade é que esses estudos estão em curso e estão anunciados resultados da maioria deles para o final deste ano [ver fonte]. Com alguma dose de optimismo, é possível assumir que venha a acontecer. Mas o processo não termina aqui. Até agora, estamos a falar do trabalho dos laboratórios farmacêuticos. Mas os laboratórios farmacêuticos são parte interessada no processo, já que pretendem desenvolver vacinas para as vender e ganhar dinheiro com isso. Por muito honestos que sejam, têm um conflito de interesses óbvio. Por isso, é preciso que os estudos feitos pelos laboratórios farmacêuticos sejam validados por uma entidade reguladora, que autorize a sua introdução no mercado. Em Portugal, essa autoridade é o Infarmed; na União Europeia, a EMA (que quase veio para o Porto [ver fonte]); e, nos EUA, a FDA. O processo de autorização, por muito rápido que seja, não se faz da noite para o dia; caso contrário, corremos o risco de fazer pior a emenda que o soneto: cometer erros e descredibilizar as entidades reguladoras, a indústria farmacêutica e as vacinas em geral.

Mesmo que tudo corra bem e seja o mais rápido possível, é depois preciso conseguir ainda produzir e administrar milhões de doses de vacina. Os laboratórios farmacêuticos têm uma capacidade de produção limitada. Por exemplo, a Moderna anunciou quinhentos milhões de doses por ano, o que não chega para vacinar sequer dez por cento da população mundial [ver fonte]. Para a Europa, estão reservados oitenta milhões de doses [ver fonte], o que permitiria cobrir menos de dez por cento da população europeia (não esquecer que a Moderna referiu que seriam provavelmente necessárias duas doses de vacina por pessoa [ver fonte]). Por muito que aumentemos a capacidade de produção, nem toda a gente vai poder ser vacinada de imediato.

Até porque, mesmo que tivéssemos um fornecimento ilimitado de vacinas, teríamos ainda o problema de operacionalizar a sua administração. Não temos doses infinitas, mas também não temos enfermeiros infinitos, para as administrarem às pessoas; nem temos instalações infinitas, para os enfermeiros fazerem o seu trabalho; planear, criar condições para a execução e executar de facto toda a operação de vacinação leva o seu tempo. Por muito rápidos que sejamos, estamos a falar de meses.

Finalmente, temos a questão do que a vacina pode realmente fazer. Há dois tipos de efeitos da vacina. Um deles é o de reduzir a transmissão, o outro é de reduzir a gravidade da doença. Se as vacinas que vierem a ser lançadas no mercado tiverem por efeito principal reduzir a gravidade da doença, sem grande impacto na transmissão, então a estratégia de vacinação terá de passar pela priorização dos grupos mais susceptíveis a complicações graves ou mortais, pois é certo que o vírus continuará a circular na comunidade e apenas as pessoas vacinadas ficarão protegidas das formas graves da doença.

Se as vacinas tiverem um forte impacto na redução da transmissão, então deveremos procurar generalizar a vacinação o mais possível, de modo a procurar atingir a imunidade de grupo. Mas também é preciso termos noção do que é preciso fazer, neste contexto. A quantidade de pessoas que é preciso vacinar depende de duas coisas: da contagiosidade do vírus e da eficácia da vacina. A contagiosidade do vírus mede-se através do chamado R0, que, no caso da Covid-19, é de 2, ou seja, sem quais quer medidas de prevenção, um doente contagia, em média, duas pessoas. Se assumirmos que a vacina tem uma eficácia de 75%, o que não é nada mau, teríamos de vacinar dois terços da população para conseguir anular o contágio. Mas, se assumirmos que a eficácia da vacina é de apenas 50%, como acontece muitas vezes com a vacina da gripe, para contermos a progressão da doença seria necessário vacinar a totalidade da população. Em qualquer dos casos, o número de vacinas da Moderna que a Comissão Europeia negociou não seria suficiente.

Mas não basta analisar a eficácia inicial da vacina. É preciso saber se essa eficácia é duradoura. Ainda não sabemos muito sobre a imunidade produzida pela infecção pelo coronavírus, mas os estudos existentes até à data não nos permitem assumir que as vacinas produzam imunidade duradoura [ver fonte]. Por outras palavras, pode ser necessário vacinar a população todos os anos, para garantir a continuidade da imunidade.

Resumindo e concluindo, há demasiadas incógnitas e demasiados obstáculos, para podermos dizer com segurança que a vacina nos permitirá retomar a vida que tínhamos antes da pandemia, muito menos já para o ano que vem.

Gostaste? Partilha e deixa quem gostas gostar também!